Ventava lá fora. O céu estava tomado por nuvens cinzentas
que traziam consigo um presságio de chuva.
Meu quarto estava imerso numa penumbra infinita. Uma grossa camada de
poeira habitava a mobília do ambiente. Fitei, sobre o criado mudo, o sanduiche
que eu desistira de comer. Depois de uma hora, totalmente frio, percebi que
aquela refeição não entraria nem com promessa.
Sucumbi à solidão daquele recinto, evitando meus pensamentos
e tomando o controle sobre tudo o que me habitava. Encarei-a longamente à
distância. Ela brilhava. Parecia sorrir para mim. Acenava longamente e chamava
o meu nome. Deitei na cama enquanto algo preso em mim implorava pela quebra da
abstinência. Costumava achar aquilo normal. A gente não sabe se tem um coração
até ele acelerar. A gente não sabe se tem um estômago até ele protestar de
fome. Eu só sabia que estava viva quando aquela fina língua de sangue escorria
pelo meu braço. Minhas lágrimas cessavam. Eu estava viva, afinal, mortos não
sangram.
Respirei fundo enquanto atavam algo em meu peito com nó de
marinheiro. A chuva começava a martelar nas vidraças da casa. Puxei as cobertas
para junto do meu corpo e calei meu íntimo.
- Está sozinha? – Eu o conhecia. Vi sua silhueta recortada
pela luz que adentrava pela fresta da janela. Os cabelos já atingiam os ombros.
Sentou-se na estreita poltrona de canto e me observou longamente. – Está sozinha?
– Perguntou novamente.
- Não, estou comigo mesma. – Respondi.
- Que bela companhia, não? – ele aplaudiu e cuspiu a ironia
na minha face.
- Não importa.
- Você está sozinha. – Ele já afirmava. Rumou até mim e afagou
os meus cabelos. – Mas eu estou aqui.
- Que bela companhia, não? – Ataquei. Senti suas mãos
segurarem as laterais de minha cabeça e lágrimas brotarem dos meus olhos. Meu
coração parou momentaneamente. Meus lábios deixaram escapar o som choroso
daqueles que não suportam mais sofrer. Encolhi-me na cama e ele sumiu. Tomei a
navalha em minhas mãos e ele reapareceu. Eu estava ali, ele não estava. Eu não
estava e ele reaparecia. Ele não era eu. Eu era ele. Ele era meu inconsciente.
- Eu posso ver os seus sonhos, minha cara. E eu posso sentir
o seu transtorno. Eu consigo tocar a sua dor e ela me pertence. - Sussurrou em
meus ouvidos. – Eu sei que seu celular não toca. Eu sei que seu coração se
desmancha toda noite. Eu sei que você reza implorando para ter forças e não
desistir. Mas suas forças me pertencem e eu decido quando você vai tê-la de
volta ou não.
De repente, um clarão se instalou no quarto. Senti a brisa e
o cheiro de terra molhada que ela emanava. Quando pousou, o cheiro de páginas
de livros invadiu o ambiente. Suas grandes asas fecharam-se e pude ver em sua
expressão a tranquilidade que emanava. O cabelo ruivo e cacheado caia sobre
seus ombros e terminavam em seus joelhos. Se aproximou de mim lentamente e
beijou minha testa.
- Está na hora de dormir. – Minhas pálpebras pesaram e a
ultima coisa que vi foram seus braços agarrando toda aquela névoa negra e
levando-a consigo. Agradeci mentalmente à Moira e fechei os olhos, rendendo-me
ao sono. Quando acordei de manhã, nada parecia ter acontecido.
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